A enxerga por Catarina Costa

Catarina Costa autora do livro "Marcas de Urze" (2008 - 1º Prémio de Poesia Guilherme de Faria ) editado pelas Cosmorama Edições, acedeu gentilmente ao meu convite e escreveu este belo texto a partir de uma fotografia
de minha autoria.


Ela acreditou que ainda iria a tempo de resgatar algum resquício dele deixado nas coisas depois de tanto tempo em que nelas depositara o corpo, ainda iria a tempo de salvar alguma forma orgânica que desprendesse um rastilho seu. Haveria de exumá-lo ali mesmo, nessa tarde, a partir de um sedimento que tivesse remanescido ao largo do lugar onde ambos se costumavam deitar e onde ela ainda se deita, a cama de ferro coberta por mantas desbotadas. Mantas e mortalhas que arrancou nessa tarde para poder inspeccionar à luz do sol e não do candeeiro o lugar do sono e deslindar possíveis réstias de um outro corpo até então desapercebidas. Mas teria sido preciso ser um cão e não apenas a sua sombra para farejar o resíduo certo, um cão de focinho bem enterrado nos lençóis. Ela nada cheirou. Nenhum odor característico, nenhum fio de cabelo sobrevivera às lavagens impostas pelo passar dos dias. Arrancou então os lençóis – talvez no próprio colchão, que não fora lavado, se pudesse ainda libertar alguma emanação alheia. Mas uma vez mais teria sido preciso ser um cão para a identificar. Ela não tem faculdades para reconhecer auras a partir de detritos. Ou de agarrar determinado grão microscópico. As mãos deixou-as, por alguns instantes, ondear pela planura esponjosa e pelas covas do colchão. Agora só faltava cravar as unhas, esventrar a enxerga até ir ao fundo de onde haviam dormido, afundar-se na espuma. Mas bastou um rasgo na horizontal para que visse a inutilidade desta tentativa de submersão. Percebendo de repente que devia era ver-se livre daquele colchão enorme já perfurado. Quando o carregou às costas no caminho para a sucata, sentiu bem a sua desmesura, a desproporcionalidade em relação ao uso dividido que lhe dava. Ao atirá-lo, com todo o seu peso, para o meio do lixo, atirou também, ao de leve, a almofada. Para que fizessem parelha. Agora dorme em cima das tábuas.

STILB LIFE by Daniel Curval






O projecto ShareMag.net convidou-me a apresentar um portfolio fotográfico.
Esse portfolio tem como título: Stilb Life - Fotografias de imagens moribundas
e pode ser conhecido no website http://www.sharemag.net/
Fica aqui registado o meu agradecimento ao José Carlos Marques do ShareMag
e ao João Gomes Martins pelo excelente texto
"Entre a mundanidade precária dos objectos e a sua permanência transparente na arte"
que acompanha o portfolio.



stilb [stilb]

s.m. FÍSICA unidade de medida de brilho, de símbolo sb,

equivalente a uma candela por centímetro quadrado (do gr. Stílbein, «brilhar»)

in Dicionário da Língua Portuguesa 2004. Porto Editora



A estranheza e a ambiguidade do título deste trabalho fotográfico é de imediato ultrapassada após a leitura desta série de fotografias. Realizadas sobre uma reflexão do mundo contemporâneo, registam um tempo cristalizado, as imagens de um real daquilo que ainda é, que ainda (still) existe mas que está quase a falecer num limbo existencial, imagens moribundas ou até mesmo mortas. Estas fotografias são no aspecto da captura intuítiva do momento, a antítese do "instante decisivo" de Henri Cartier-Bresson, estando por afinidades, mais próximas dos enquadramentos estertores de Eugène Atget.

Serenas no seu estado cristalizado a encenação está ausente e não são "still life – natureza morta" mas imagens que ainda têm ou tiveram uma relação umbilical com a vida, que exalam uma última centelha de luz para a câmara fotográfica e durante essa metamorfose a imagem morre materializando-se numa fotografia.

Nesta série são apresentadas stilbs lifes de objectos "uma coisa imortal realizada por mãos mortais" (Hannah Arendt).



Como complemento aqui ficam as palavras de Apronenia Avitia, uma patrícia romana que viveu no século IV a.d. e que no seu diário escrito em tábuas de buxo registou, entre outros, este fragmento:


LXXIII. Objectos conservados do passado



Com P. Saufeius, contámos os objectos que tínhamos conservado do ano passado e cuja visão nos comovia.

Um pedaço de pano amarelo, do amarelo que se extrai das folhas de camomila.

Duas tábuas de Q. Alcimius onde nem três palavras havia.

O carro de duas rodas em restauro.

Um pião infantil de um azul tão desbotado que já está quase branco.

As unhas e o cabelo de Papianilha.

Publius diz:

- O único objecto do passado é cada noite em que brilha a lua cheia, e o chão seco, sem sombra de um vestígio.

in As tábuas de buxo de Apronenia Avitia. Edições Cotovia, 1999

Daniel Curval



Entre a mundanidade precária dos objectos e a sua permanência transparente na arte. *

Hannah Arendt no seu livro "Condition de l'homme moderne" caracteriza nestes termos o conjunto dos objectos que o homem produz: "Considerados como elementos do mundo (…) eles garantem a permanência, a durabilidade, sem as quais não existiria nenhum mundo possível. (…) Esse meio composto por objectos que não são consumidos, mas utilizados e habitados, e porque os habitamos também nos habituamos a eles, estão na origem da familiaridade com o mundo, dos seus costumes, das relações usuais entre o homem e as coisas, como ainda entre o homem e os outros homens." Mas o que podemos apelidar a mundanidade dos objectos não é a sua simples presença ou ainda a sua realidade "objectiva", mas como o indica Gianni Vattimo, em "Introduction à Heidegger", ela define-se como "instrumentalidade essencial, como Zuhandenheit, ou de modo mais geral, como significação em relação à nossa vida (…) que não é algo que se acrescenta à sua "objectividade", mas que constitui o seu modo de ser (…) e o modo segundo o qual eles se apresentam primordialmente na nossa experiência." Estas considerações permitem, parece-nos, identificar as operações que organizam o trabalho que presidiu ao conjunto de fotografias que Daniel Curval intitulou Stilbs lifes. Em que circunstâncias é que o olhar do fotógrafo e a lente do seu aparelho fotográfico são mobilizados? Precisamente perante objectos que perderam ou que não actualizam a sua essência mundana enquanto instrumentalidade. São objectos isolados do conjunto que lhes conferiria consistência, como no caso da bicicleta encostada a uma parede (Stilb life XLII) numa subtracção ao seu ser instrumental, ou uma mesa e umas cadeiras de jardim empilhadas manifestando os sinais de uma expatriação do mundo (stilb life XLI). Um outro caso é ilustrado pelos interiores vazios, totalmente ou em parte, desocupados e desfrutando duma espécie de ociosidade sui generis. Para ilustrar um grau superior de des-mundanização, temos o "tv cemetery", uma espécie de geena dos objectos, o sofá castanho, como que extraviado do mundo e desaparecendo no meio das ervas de um descampado (stilb life XL), as ruínas de uma habitação, como em "O quadrado vermelho de Malevitch" e em "stilb life XXXIV".

Portanto, estas fotografias como que expõem diversas modalidades de um exílio do mundo, próprio aos objectos, as suas diversas formas de exclusão, poderíamos acrescentar. Correlativamente a esta situação, a operação do fotógrafo, singela em aparência, poderia consistir, numa primeira acepção, num gesto de protesto contra um processo, em parte natural de corrupção dos objectos, produto duma obra criadora, mas também, em parte, fomentado por uma sociedade que submete tudo a uma obsolescência cada vez mais acentuada. Numa segunda acepção, esta operação seria uma forma de resgatar os objectos desocupados (no sentido em que falamos das pessoas desempregadas), expatriados ou fisicamente corrompidos e de oferecer-lhes uma possível modalidade de existência feita das virtualidades da luz que permite registá-las e da contemplação que lhes podemos dispensar. Sendo assim, a arte permitiria compensar a precária instabilidade do mundo e dos seus objectos, pois no dizer de Hannah Arendt "Tudo se passa como se a estabilidade do mundo se tornasse transparente na permanência da arte, de modo que um pressentimento de imortalidade, não da alma ou da vida, mas de uma coisa imortal realizada por mãos mortais, se torna tangível e presente para resplandecer, para que se possa ver, para cantar e que se possa ouvir, para ler por quem estiver disponível para lê-lo."

* texto elaborado a partir dos stilbs lifes do website "stilb photography" em Julho de 2010

João Gomes Martins - Mestrado em Filosofia pela Universidade do Porto

portfolio STILB LIFE na ShareMag.net

O projecto ShareMag.net convidou-me a apresentar um portfolio fotográfico.
Esse portfolio tem como título: Stilb Life - Fotografias de imagens moribundas
e pode ser conhecido no website http://www.sharemag.net/
Fica aqui registado o meu agradecimento ao José Carlos Marques do ShareMag
e ao João Gomes Martins pelo excelente texto
"Entre a mundanidade precária dos objectos e a sua permanência transparente na arte"
que acompanha o portfolio.



working on the next photographic project to publish. news in brief.