“Que Cor Esconde a Dor?”



Notas sobre a obra “Que Cor Esconde a Dor?” por Marta Fernandes




Antes do nosso olhar se dedicar à obra propriamente dita, há um desafio prévio que nos impele à reflexão: o título interrogativo que lhe é dado parece-nos inextricável daquilo com que depois o olhar será confrontado.
Afinal, haverá uma cor apta a esconder, a ocultar a dor? No entanto, da questão basilar que nos é proposta germinam outras possíveis: Mas de que dor falamos? Dor física, emocional, ou tal distinção é, em muitos casos, inexistente, irrelevante, confundindo-se o emocional no físico e/ou vice-versa? Finalmente, o facto daquilo que aparentemente oculta a dor ser, afinal, algo de ilusório, inexistente, fruto de uma construção cerebral e da intermediação da luz: a cor!
Então, como pode uma ilusão ser suficiente para esconder a dor? Estas algumas das perguntas que julgamos ramificar-se a partir do título da obra. E é precisamente a pergunta/título que não só nos desafia mas também nos guia no, posterior, embate visual com uma construção artística, à primeira vista, incisivamente incómoda, áspera, perante a qual os olhos quase involuntariamente preferem evitar a enfrentar o que lhes é dado a observar.
Porque aquilo que o autor nos apresenta como materialização ou desenvolvimento da questão formulada (adiantamos, desde já que não julgamos que, no final do percurso para o qual a criação nos impele, iremos encontrar singular resposta que se coadune com qualquer definitividade) é peremptoriamente desagradável, desde logo, pelo modo directo como (potencialmente) consegue vincular cada um dos observadores, como lhes fala, ou até como lhes “grita”!
Se por um lado, lhes repele o olhar pela sua quase crueza - as suturas grosseiras, as camadas de manchas de sangue que sabemos um significativo elemento pessoal do autor enquanto realidade que irrompe de modo categórico, sem concede a lirismos - (e nesse ângulo recorda-nos a componente de ruptura, subversiva contra o  “establishment”  político, social e artístico de um movimento, essencialmente performativo dos anos 60-70, que foi o actionismo vienense),  por outro lado desse incómodo inicial há o surgimento de uma empatia, o já aludido vínculo, culminando com uma identificação com o que nos é apresentado.


E o que nos é dado a ver é, primacialmente, uma superfície que reporta já a uma visceralidade na qual se fundam os elementos que compõem o trabalho: o corte que não vemos porque suturado ou o sangue que permanece ininterrupto nas manchas, mantendo o vermelho mais acentuado, sem que, novamente, nos permita ver o corte. Não é apenas a potência da metáfora geradora de compaixão que nos cativa, é o acto de quem  observa a obra se rever nela como se do seu próprio corpo  se tratasse.
O corte que aqui não nos é dado a ver directamente, recordando-nos, porém, confluir das emblemáticas perfurações espacialistas de Lucio Fontana, também poderá indicar que o mais importante é o invisível, o que não se vê, o que está mediato, latente, oculto - ou pelo menos aquilo que, numa primeira abordagem, se esconde- do que aquilo que é imediatamente visível!
E apesar de não estarmos no domínio de uma “acção” sobre o próprio corpo do artista, pois não se trata obviamente de uma performance, não deixa de estar aqui patente a dor (ou o simulacro da mesma possível através da obra, a imitação dessa dor talvez sempre exprimível apenas limitadamente, independentemente do meio para esse efeito) exteriorizável nesse mesmo corpo referente, exterior e interior abarcáveis,  ressaltando, por isso, o corpo humano e a sua força vital: o sangue!
Sangue derramado pelo autor na obra como reflexo de uma pessoalização mas também como assunção de vínculo maior e ligação do autor ao outro, a dor como factor universalizante, a que nenhum ser humano é alheio! A violência da dor, quer física quer emocional, como característica inarredável do ser humano. Também por isso, não será a dor, que a todos nos une, factor de humanidade pelo modo específico como apenas os seres racionais com ela lidam, em particular com a dor emocional, mais ainda se considerarmos a estruturação da sociedade contemporânea onde o espaço das emoções e sensações vem sendo, também ele, assaltado ferozmente pelo ímpeto consumista, do prazer momentâneo e gratuito e da procura do amortecimento senão da anulação da dor? Ora, nessa medida, até que ponto não será a dor vestígio de uma humanidade cada vez mais desencontrada consigo própria por oposição a um ser humano cada vez mais próximo da automaticidade comportamental? Convém não esquecermos que o contexto histórico-social do surgimento de um fenómeno aparentemente artístico como o kitsch (que, sem surpresas face ao que referimos previamente e e de forma sintomática, continua a expandir-se hodiernamente), após as atrocidades sangrentas da II Guerra Mundial, do abominável Holocausto,  e que visava (visa) de, certo modo, um mundo desumano, no sentido de a emoção ser constantemente adocicada, aromatizada com o fito de inebriar, sem verdadeiramente deixar emergir o sentir! Trata-se, no fundo, de entorpecer os sentidos na tentativa de uma fuga à dor! Resulta que “Que esconde a dor?” não podia colocar-se em campo mais oposto a esse!


Dedicando agora uma atenção mais pormenorizada aos elementos que compõe esta criação:
O que desde logo atrai o observador é a sutura, algo rude, como que desenhando um caminho ou quiçá até uma linha férrea que entronca com outra/o.  Possíveis e plúrimos sentidos aqui concorrem: a dor que sempre nos encontra, porque humanos somos, independentemente do caminho tomado, e dores há que se voltam a (re)encontrar porque tiveram a mesma origem ou porque mais tarde se reconhecem, ainda que tendo origens distintas! Muito interessante esta sugestão imagética também pela minúcia, o detalhe numa das suturas, que ao prolongar-se, não toca directamente na borda do círculo de cortiça que dá base à obra mas, antes, o faz através de uma ténue e minúscula linha de sangue, quase imperceptível! Porventura, e continuando a socorrer-nos da metáfora que conforma a obra, haverá dores menos suturáveis do que outras e talvez existam aquelas que não se compadecem com qualquer tipo de suturação. E nessa medida encontramos como que salpicos de sangue e manchas vermelhas a apontar nesse sentido…da “insuturabilidade” de alguns cortes e consequentes “feridas”. E tanto espaço em branco ainda disponível…
Do mesmo modo, a circularidade que enforma a obra reforça a constância da dor assim como poderá apontar para a existência de dores de tal modo pujantes, extensas ou mesmo dilacerantes que não lhes encontramos princípio nem fim…e por isso assemelharem-se à infinitude. Eventualmente o espaço do círculo mais do que o corpo é a representação última do tempo de vida à disposição de cada ser humano!
Curioso notar ainda a presença de uma mancha maior acastanhada à qual é dada centralidade e sobre ela as enfáticas suturas que sugerem ser, mais ou menos recentes. Talvez, aqui, novamente, uma alusão à passagem do tempo, que costumeiramente se associa à dor e regeneração, mas que nem sempre tem o efeito curativo desejado, sendo apenas o paliativo possível para a dor, especialmente, a emocional. Consequentemente, mais uma pergunta nos é suscitada: o tempo será sempre um amortecedor da dor, contribuirá sempre para que aquela esmoreça? Ou poderá o tempo, ampliá-la, tornando-se até seu aliado?


Acresce que, genericamente, a reflexão que nos convoca este trabalho é uma revisitação do conceito de dor e a parte que a mesma ocupa no “ser-se humano”, na existência! Sendo a dor universal, inata ao ser humano durante toda a vida humana, inescapável, também não é menos verdade, e sem colidir com a sensação inicial de identificação pelo espectador face à obra, que nunca podemos conhecer totalmente a dor do outro, senti-la em nós plenamente!
O que reitera o carácter dúplice da dor: esta é inegavelmente universal e no entanto profundamente subjectiva!


Assim, regressamos à questão com que iniciamos estas notas sobre a obra, reproduzindo, desta forma, a circularidade imanente a esta criação, e tentando gizar uma conclusão: sendo a cor ilusória porque fruto da actividade cerebral conjugada com a luz, não é afinal também a dor, quer a física quer a emocional, resultado da dinâmica de circuitos cerebrais, áreas do cérebro que actuam quando a fonte incitadora nos acomete? No que concerne à dor física existem, de facto, técnicas de controlo da mesma, nomeadamente, na tradição oriental através, por exemplo, da meditação.
Há, portanto, uma possível aproximação pela ilusoriedade da cor com a dor.
Todavia, e voltando aos elementos constituintes da obra, os alfinetes, perfurantes, que nela estão dispostos ao longo do círculo voltam a destacar a constância dos momentos perpetradores da dor ao longo da vida humana. Este elemento concreto recorda-nos a magnífica obra do artista alemão Günther Uecker quando, analogamente, utiliza não alfinetes mas pregos precisamente para evocar a inevitabilidade da dor ao longo da vida.
Destacariamos ainda o facto de ao desconforto inicial que depois se converte em plena identificação com a mensagem do autor, juntar-se uma remissão de vulnerabilidade pelo modo como o título interrogativo da obra é inscrito (incorporado) na mesma: letras com um aspecto pueril, que nos invoca o tempo da  infância! E afinal não é tantas vezes nesse lugar quase longínquo e paradoxalmente tão presente que a memória se vai encarregando de recriar, reconstruir, onde se encontram dores maiores que aparentemente debeladas surgem já na idade adulta, rebentam as suturas de outras dores, intensificando-as, ou dando-lhes mesmo uma magnitude maior do que a real?


Claro que não poderiamos terminar este apontamento sobre a obra sem uma referência quanto ao modo como foi realizada a integração do material - cortiça- na criação.
E sendo esta a base, sendo o material semelhante a uma “pele” onde se fixam os demais elementos, sabemos que os cortes nos sobreiros têm uma função utilitária, económica, deles resulta uma  vantagem. Se transpusermos tal aspecto para o que temos vindo a explorar através deste trabalho artístico, constatamos que a dor sendo inevitável para o ser humano obriga também a um crescimento, amadurecimento, a um fortalecimento em resultado da resistência.
Para a cura é sempre necessário e inevitável o confronto com a origem da fonte da dor. Pois aí reside o caminho para a superação ou pelo menos para a acomodação da dor no lugar que nos for possível encontrar para tal emoção desavinda. Essa será, então, a função utilitária da dor: tornar-nos seres humanos mais resistentes, acumulando de dor em dor experiência no modo como “suturamos as nossas feridas”. Neste seguimento, podemos ver neste trabalho essa mesma confrontação como forma de, ao destacar um processo que dura uma vida inteira, nos tornar conscientes da inevitabilidade desse confronto.
Por isso, “Que cor esconde a dor?” coloca primazia nessa necessidade confrontacional com a dor enquanto algo que nos desafiará a vida toda, pela mera condição de sermos humanos!
Assim como o desafio da interrogação que serviu de título à obra, e por onde começamos esta pequena análise, não poder ter, irremediavelmente, resposta definitiva.
Apenas cada um de nós saberá dar à (sua) dor a sua cor, tão pessoal e tão intransmissível!

31-08-2017




2008-2013 (c) Daniel Curval