Catarina Costa autora do livro "Marcas de Urze" (2008 - 1º Prémio de Poesia Guilherme de Faria ) editado pelas Cosmorama Edições, acedeu gentilmente ao meu convite e escreveu este belo texto a partir de uma fotografia
de minha autoria.
de minha autoria.
Ela acreditou que ainda iria a tempo de resgatar algum resquício dele deixado nas coisas depois de tanto tempo em que nelas depositara o corpo, ainda iria a tempo de salvar alguma forma orgânica que desprendesse um rastilho seu. Haveria de exumá-lo ali mesmo, nessa tarde, a partir de um sedimento que tivesse remanescido ao largo do lugar onde ambos se costumavam deitar e onde ela ainda se deita, a cama de ferro coberta por mantas desbotadas. Mantas e mortalhas que arrancou nessa tarde para poder inspeccionar à luz do sol e não do candeeiro o lugar do sono e deslindar possíveis réstias de um outro corpo até então desapercebidas. Mas teria sido preciso ser um cão e não apenas a sua sombra para farejar o resíduo certo, um cão de focinho bem enterrado nos lençóis. Ela nada cheirou. Nenhum odor característico, nenhum fio de cabelo sobrevivera às lavagens impostas pelo passar dos dias. Arrancou então os lençóis – talvez no próprio colchão, que não fora lavado, se pudesse ainda libertar alguma emanação alheia. Mas uma vez mais teria sido preciso ser um cão para a identificar. Ela não tem faculdades para reconhecer auras a partir de detritos. Ou de agarrar determinado grão microscópico. As mãos deixou-as, por alguns instantes, ondear pela planura esponjosa e pelas covas do colchão. Agora só faltava cravar as unhas, esventrar a enxerga até ir ao fundo de onde haviam dormido, afundar-se na espuma. Mas bastou um rasgo na horizontal para que visse a inutilidade desta tentativa de submersão. Percebendo de repente que devia era ver-se livre daquele colchão enorme já perfurado. Quando o carregou às costas no caminho para a sucata, sentiu bem a sua desmesura, a desproporcionalidade em relação ao uso dividido que lhe dava. Ao atirá-lo, com todo o seu peso, para o meio do lixo, atirou também, ao de leve, a almofada. Para que fizessem parelha. Agora dorme em cima das tábuas.