Antes
do nosso olhar se dedicar à obra propriamente dita, há um desafio
prévio que nos impele à reflexão: o título interrogativo que lhe é dado
parece-nos inextricável daquilo com que depois o olhar será confrontado.
Afinal,
haverá uma cor apta a esconder, a ocultar a dor? No entanto, da questão
basilar que nos é proposta germinam outras possíveis: Mas de que dor
falamos? Dor física, emocional, ou tal distinção é, em muitos casos,
inexistente, irrelevante, confundindo-se o emocional no físico e/ou
vice-versa? Finalmente, o facto daquilo que aparentemente oculta a dor
ser, afinal, algo de ilusório, inexistente, fruto de uma construção
cerebral e da intermediação da luz: a cor!
Então,
como pode uma ilusão ser suficiente para esconder a dor? Estas algumas
das perguntas que julgamos ramificar-se a partir do título da obra. E é
precisamente a pergunta/título que não só nos desafia mas também nos
guia no, posterior, embate visual com uma construção artística, à
primeira vista, incisivamente incómoda, áspera, perante a qual os olhos
quase involuntariamente preferem evitar a enfrentar o que lhes é dado a
observar.
Porque
aquilo que o autor nos apresenta como materialização ou desenvolvimento
da questão formulada (adiantamos, desde já que não julgamos que, no
final do percurso para o qual a criação nos impele, iremos encontrar
singular resposta que se coadune com qualquer definitividade) é
peremptoriamente desagradável, desde logo, pelo modo directo como
(potencialmente) consegue vincular cada um dos observadores, como lhes
fala, ou até como lhes “grita”!
Se
por um lado, lhes repele o olhar pela sua quase crueza - as suturas
grosseiras, as camadas de manchas de sangue que sabemos um significativo
elemento pessoal do autor enquanto realidade que irrompe de modo
categórico, sem concede a lirismos - (e nesse ângulo recorda-nos a
componente de ruptura, subversiva contra o “establishment” político, social e artístico de um movimento, essencialmente performativo dos anos 60-70, que foi o actionismo vienense),
por outro lado desse incómodo inicial há o surgimento de uma empatia, o
já aludido vínculo, culminando com uma identificação com o que nos é
apresentado.
E
o que nos é dado a ver é, primacialmente, uma superfície que reporta já
a uma visceralidade na qual se fundam os elementos que compõem o
trabalho: o corte que não vemos porque suturado ou o sangue que
permanece ininterrupto nas manchas, mantendo o vermelho mais acentuado,
sem que, novamente, nos permita ver o corte. Não é apenas a potência da
metáfora geradora de compaixão que nos cativa, é o acto de quem observa
a obra se rever nela como se do seu próprio corpo se tratasse.
O
corte que aqui não nos é dado a ver directamente, recordando-nos,
porém, confluir das emblemáticas perfurações espacialistas de Lucio
Fontana, também poderá indicar que o mais importante é o invisível, o
que não se vê, o que está mediato, latente, oculto - ou pelo menos
aquilo que, numa primeira abordagem, se esconde- do que aquilo que é
imediatamente visível!
E apesar de não estarmos no domínio de uma “acção” sobre o próprio corpo do artista, pois não se trata obviamente de uma performance,
não deixa de estar aqui patente a dor (ou o simulacro da mesma possível
através da obra, a imitação dessa dor talvez sempre exprimível apenas
limitadamente, independentemente do meio para esse efeito)
exteriorizável nesse mesmo corpo referente, exterior e interior
abarcáveis, ressaltando, por isso, o corpo humano e a sua força vital: o
sangue!
Sangue derramado pelo autor na obra como reflexo de uma pessoalização
mas também como assunção de vínculo maior e ligação do autor ao outro, a
dor como factor universalizante, a que nenhum ser humano é alheio! A
violência da dor, quer física quer emocional, como característica
inarredável do ser humano. Também por isso, não será a dor, que a todos
nos une, factor de humanidade pelo modo específico como apenas os seres
racionais com ela lidam, em particular com a dor emocional, mais ainda
se considerarmos a estruturação da sociedade contemporânea onde o espaço
das emoções e sensações vem sendo, também ele, assaltado ferozmente
pelo ímpeto consumista, do prazer momentâneo e gratuito e da procura do
amortecimento senão da anulação da dor? Ora, nessa medida, até que ponto
não será a dor vestígio de uma humanidade cada vez mais desencontrada
consigo própria por oposição a um ser humano cada vez mais próximo da
automaticidade comportamental? Convém não esquecermos que o contexto
histórico-social do surgimento de um fenómeno aparentemente artístico
como o kitsch
(que, sem surpresas face ao que referimos previamente e e de forma
sintomática, continua a expandir-se hodiernamente), após as atrocidades
sangrentas da II Guerra Mundial, do abominável Holocausto, e que visava
(visa) de, certo modo, um mundo desumano, no sentido de a emoção ser
constantemente adocicada, aromatizada com o fito de inebriar, sem
verdadeiramente deixar emergir o sentir! Trata-se, no fundo, de
entorpecer os sentidos na tentativa de uma fuga à dor! Resulta que “Que esconde a dor?” não podia colocar-se em campo mais oposto a esse!
Dedicando agora uma atenção mais pormenorizada aos elementos que compõe esta criação:
O
que desde logo atrai o observador é a sutura, algo rude, como que
desenhando um caminho ou quiçá até uma linha férrea que entronca com
outra/o. Possíveis e plúrimos sentidos aqui concorrem: a dor que sempre
nos encontra, porque humanos somos, independentemente do caminho
tomado, e dores há que se voltam a (re)encontrar porque tiveram a mesma
origem ou porque mais tarde se reconhecem, ainda que tendo origens
distintas! Muito interessante esta sugestão imagética também pela
minúcia, o detalhe numa das suturas, que ao prolongar-se, não toca
directamente na borda do círculo de cortiça que dá base à obra mas,
antes, o faz através de uma ténue e minúscula linha de sangue, quase
imperceptível! Porventura, e continuando a socorrer-nos da metáfora que
conforma a obra, haverá dores menos suturáveis do que outras e talvez
existam aquelas que não se compadecem com qualquer tipo de suturação. E
nessa medida encontramos como que salpicos de sangue e manchas vermelhas
a apontar nesse sentido…da “insuturabilidade” de alguns cortes e
consequentes “feridas”. E tanto espaço em branco ainda disponível…
Do
mesmo modo, a circularidade que enforma a obra reforça a constância da
dor assim como poderá apontar para a existência de dores de tal modo
pujantes, extensas ou mesmo dilacerantes que não lhes encontramos
princípio nem fim…e por isso assemelharem-se à infinitude. Eventualmente
o espaço do círculo mais do que o corpo é a representação última do
tempo de vida à disposição de cada ser humano!
Curioso
notar ainda a presença de uma mancha maior acastanhada à qual é dada
centralidade e sobre ela as enfáticas suturas que sugerem ser, mais ou
menos recentes. Talvez, aqui, novamente, uma alusão à passagem do tempo,
que costumeiramente se associa à dor e regeneração, mas que nem sempre
tem o efeito curativo desejado, sendo apenas o paliativo possível para a
dor, especialmente, a emocional. Consequentemente, mais uma pergunta
nos é suscitada: o tempo será sempre um amortecedor da dor, contribuirá
sempre para que aquela esmoreça? Ou poderá o tempo, ampliá-la,
tornando-se até seu aliado?
Acresce
que, genericamente, a reflexão que nos convoca este trabalho é uma
revisitação do conceito de dor e a parte que a mesma ocupa no “ser-se
humano”, na existência! Sendo a dor universal, inata ao ser humano
durante toda a vida humana, inescapável, também não é menos verdade, e
sem colidir com a sensação inicial de identificação pelo espectador face
à obra, que nunca podemos conhecer totalmente a dor do outro, senti-la
em nós plenamente!
O que reitera o carácter dúplice da dor: esta é inegavelmente universal e no entanto profundamente subjectiva!
Assim,
regressamos à questão com que iniciamos estas notas sobre a obra,
reproduzindo, desta forma, a circularidade imanente a esta criação, e
tentando gizar uma conclusão: sendo a cor ilusória porque fruto da
actividade cerebral conjugada com a luz, não é afinal também a dor, quer
a física quer a emocional, resultado da dinâmica de circuitos
cerebrais, áreas do cérebro que actuam quando a fonte incitadora nos
acomete? No que concerne à dor física existem, de facto, técnicas de
controlo da mesma, nomeadamente, na tradição oriental através, por
exemplo, da meditação.
Há, portanto, uma possível aproximação pela ilusoriedade da cor com a dor.
Todavia,
e voltando aos elementos constituintes da obra, os alfinetes,
perfurantes, que nela estão dispostos ao longo do círculo voltam a
destacar a constância dos momentos perpetradores da dor ao longo da vida
humana. Este elemento concreto recorda-nos a magnífica obra do artista
alemão Günther Uecker quando, analogamente, utiliza não alfinetes mas pregos precisamente para evocar a inevitabilidade da dor ao longo da vida.
Destacariamos
ainda o facto de ao desconforto inicial que depois se converte em plena
identificação com a mensagem do autor, juntar-se uma remissão de
vulnerabilidade pelo modo como o título interrogativo da obra é inscrito
(incorporado) na mesma: letras com um aspecto pueril, que nos invoca o
tempo da infância! E afinal não é tantas vezes nesse lugar quase
longínquo e paradoxalmente tão presente que a memória se vai
encarregando de recriar, reconstruir, onde se encontram dores maiores
que aparentemente debeladas surgem já na idade adulta, rebentam as
suturas de outras dores, intensificando-as, ou dando-lhes mesmo uma
magnitude maior do que a real?
Claro
que não poderiamos terminar este apontamento sobre a obra sem uma
referência quanto ao modo como foi realizada a integração do material -
cortiça- na criação.
E
sendo esta a base, sendo o material semelhante a uma “pele” onde se
fixam os demais elementos, sabemos que os cortes nos sobreiros têm uma
função utilitária, económica, deles resulta uma vantagem. Se
transpusermos tal aspecto para o que temos vindo a explorar através
deste trabalho artístico, constatamos que a dor sendo inevitável para o
ser humano obriga também a um crescimento, amadurecimento, a um
fortalecimento em resultado da resistência.
Para
a cura é sempre necessário e inevitável o confronto com a origem da
fonte da dor. Pois aí reside o caminho para a superação ou pelo menos
para a acomodação da dor no lugar que nos for possível encontrar para
tal emoção desavinda. Essa será, então, a função utilitária da dor:
tornar-nos seres humanos mais resistentes, acumulando de dor em dor
experiência no modo como “suturamos as nossas feridas”. Neste
seguimento, podemos ver neste trabalho essa mesma confrontação como
forma de, ao destacar um processo que dura uma vida inteira, nos tornar
conscientes da inevitabilidade desse confronto.
Por isso, “Que cor esconde a dor?”
coloca primazia nessa necessidade confrontacional com a dor enquanto
algo que nos desafiará a vida toda, pela mera condição de sermos
humanos!
Assim
como o desafio da interrogação que serviu de título à obra, e por onde
começamos esta pequena análise, não poder ter, irremediavelmente,
resposta definitiva.
Apenas cada um de nós saberá dar à (sua) dor a sua cor, tão pessoal e tão intransmissível!
31-08-2017
2008-2013 (c) Daniel Curval